Já linchou seu herege hoje?

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“Ad exstirpanda”. Contam uns livros empoeirados que, em maio de 1252, um papa de nome Inocêncio publicou bula autorizando o uso da tortura contra os hereges, com o objetivo, em suma, de extirpar o mal. O Mal, sempre ele. Hereges, vocês sabem, eram todos aqueles que, de alguma maneira, afrontavam o poder da Santa Igreja, e essa noção de “afrontar” era tão maleável quanto água. Não nos deixemos enganar: autorizar a torturar, com os métodos da época (e de hoje), era o mesmo que autorizar a matar. Até porque, assim como as ordens do papa, os castigos da fogueira são inapeláveis – não cabe reclamação. Se todo fiel já era, como sempre foi e será, um delator, naquele momento ele se tornava uma espécie de delator premiado, pela chance que tinha de mostrar sua fé ao denunciar os “desvios heréticos”, mas também porque agora, com suas próprias mãos, podia arrastar “bruxos” e “bruxas” até aquilo que julgava ser “A Justiça”. Bonito, né?

Não duvido de eventuais imprecisões históricas do meu relato, mas há certezas que posso defender: esta não é a única crueldade pontifícia de que os livros nos lembram, tampouco há aqui algum leitor ingênuo a ponto de negar que, por mais que a palavra “inquisição” remeta ao ato de perguntar, não era bem de perguntar que aquela turma gostava. Mas não vim falar de religião ou de história medieval, porque não entendo quase nada disso. E também porque acredito que está longe o tempo em que isso era privilégio de uma religião. Foi-se o tempo em que isso era um prazer reservado a alguns seres especialmente pervertidos.

Numa semana convulsa, em que mais uma vez as capas dos jornais não nos deixam esquecer o quanto podemos ser cruéis – nós, senhores da razão e, com ela, senhores do mundo –, o que me traz novamente ao teclado é a constatação de como temos sido mais e mais criativos para continuarmos sendo exatamente os mesmos de sempre. Desde aquele distante mês de maio (e mesmo desde muito antes dele), estamos predispostos à violência, ao espancamento, à tortura, à delação, ao linchamento. Nas suas formas simbólicas? Sim, mas também nas suas formas mais assustadoramente reais. Lacrados por certezas, tão dogmaticamente confortáveis, não há ato, por mais abjeto que seja, que possamos cometer que nos tire a razão na luta contra as bruxas que elegemos para acusar de nossos males.

Nós, “homens e mulheres de bem” (ou “do bem”, como preferem as camisetas do Luciano Huck), estamos sempre certos, mesmo quando erramos, porque agimos em defesa do Bem contra o Mal. Para extirpar, como ordenou o papa. Nove em dez manifestações que li a respeito do mais recente linchamento lamentavam, mais ou menos explicitamente, que se tratasse de alguém inocente, ou seja, cuja filiação ao Mal não se confirmou. Que pena. Extirpamos desnecessariamente. Fomos injustos (em particular), mas não somos injustos (em geral). Lamenta-se o erro da mira, mas não o tiro. Lamenta-se a escolha equivocada do condenado, mas continua autorizada a condenação, tão cruel, inapelável e irreversível como a dos antigos.

Mesmo entre os que se indignaram com o “ladrão” espancado e preso ao poste, você vai encontrar gente comemorando que um casal teve seu corpo pichado porque foi pego pichando uma pedra na praia. Mesmo entre os que se indignaram com o linchamento e morte de Fabiane Maria de Jesus, saltam aqui e ali os gritos de “tem que morrer” diante de tantos outros “hereges” condenados com a mesma rapidez. Pois extirpar é nosso ofício, nosso alívio, nossa glória.

Hoje, nesse mundo povoado de hashtags – em que o amor eterno não dura mais que 10 ou 15 fotos e as opiniões, de tão velozes, fervem como fogueiras – linchamentos não deviam nos assustar. Somos, cada um de nós, um pequeno inquisidor a distribuir acusações e pauladas em todos quantos estejam ao alcance de nossas certezas e dessa nossa capacidade de saber as respostas antes mesmo de fazer quaisquer perguntas, porque, na verdade, desprezamos a necessidade de fazer quaisquer perguntas. Sem forçar muito a aproximação, o que aconteceu no Guarujá no último final de semana não foi muito mais que uma incursão pelo mundo real daquilo de que se alimenta cada vez mais esse nosso mundinho virtual (e bem sabemos que esses dois mundos, no fundo, são apenas um), tão cheio de “gente do bem” disposta a extirpar o mal do (seu) mundo. A “likes” e pontapés.

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