Sobre poesia, ainda: Manoel Ricardo de Lima

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  1. A hiperexposição de tudo que pensamos, sentimos, imaginamos, no tempo real das redes sociais, blogs etc., obriga a poesia a procurar outra coisa para fazer? Se não, por que a poesia não se confunde com isso? Se sim, que outra coisa seria essa?

 

– Talvez seja possível pensar numa modulação diante do contrassenso da “rede social”, porque ela não engendra nenhum neutro, nenhum impasse, nem muito menos nenhuma tomada de posição. E essa hiperexposição é apenas, praticamente, a ideia de uma geografia admitida. E se algo “obriga” a poesia é porque sem nenhuma escuta e sem qualquer impessoalidade ela apenas avança e se imprime sem inscrição e sem demora como uma matéria, uma materialidade precária, logo como algo meramente biográfico, íntimo e visível. Isto, de algum modo e ao mesmo tempo, amplia e reduz severamente o jogo entre algumas possibilidades de ver e algumas possibilidades de escuta e para a escuta. Sem esforço e topando esse jogo reduzido, sim, é possível dizer que a poesia se “funde”, e até que “já era”; mas nunca que ela se “confunde”.

Por isso, uma pergunta é o quanto ainda é importante recuar diante do próprio reflexo impresso para fazer a poesia, com toda a força, desaparecer. Este desaparecimento é a sua contingência de esforço para não abandonar e nem abolir a sua estranheza em prol de um acesso ao convívio, e ao comum, como se se dirigisse a um leitor ou espectador. A poesia é o que vem num “grau do irrepresentável”, como  sugere a Maria Filomena Molder, porque se esforça para ultrapassar o visível, o sensível, o corpo, a respiração, a terra, o sofrimento etc. sem propor tabula rasa ou salvação a isso e com tudo isso. E se há um comum que ainda pode vir com a poesia que vem, como outra coisa, numa partilha política da terra, é por exemplo na radicalidade de uma operação crítica que possa desmontar todo alfabeto inflacionado [este elemento de “obrigação” e uso muito próprio dos povos policiados e escravizados].

 

  1. A dificuldade para encontrar o «tal lugar da poesia» no mundo leva os poetas a “em vão e para sempre repeti[rem] os mesmos sem roteiro tristes périplos”?

 

– Ao tentar pensar com o pensamento, Silvina Rodrigues Lopes, em alguns de seus textos em torno da poesia, se pergunta acerca da negação da estranheza em favor da novidade e do egocentrismo e, mais ainda, quando essa estranheza passa a ser incorporada também como um mero produto de feira, de supermercado. O que a anula. Uma imagem da literatura entre comércio e relações públicas, consumo, turismo cultural, um bibelot ou um croissant. Por isso ela defende, e imagino que apoiada em Derrida, a “estranheza irrecuperável”, a que não é um mero contrário da normalidade, a incondicional, a que só pode ser acolhida diante de uma hospitalidade radical. Ou seja, “acolher o inadequável” é quando a poesia se dirige a uma exigência, a uma emergência. Se os “tristes périplos”, como você invoca, giram em torno dos processos quase sempre pessoalizados [EU faço assim, EU faço assado etc.], talvez fosse interessante se pensar numa memória de cegos em que a questão não é o “lugar da poesia” ou o “lugar do poeta”, mas sim o que ainda pode gerar possibilidades de encontro; ou seja, muito mais com uma poesia que procura se perguntar o tempo inteiro como desmontar e enganar esses “lugares” admitidos para tentar compor uma geografia radicalmente imaterial e, principalmente, como confiar tudo como se fosse nada.

 

  1. O poeta continua a ser um fingidor e a poesia, um “fingimento deveras”?

 

Um ponto é uma arqueologia fixa e mapeada em torno do poeta como o que ainda afirma lugar e circunstância, incluindo-se aí o fingimento. Outro empenho, numa arqueologia mais oscilante, é projetar uma responsabilidade entre “como desmontar” e “como enganar” a poesia, ou seja, ao mesmo tempo, como desmontar e enganar todo mapa, toda cartografia e, mais ainda, como desmontar e enganar com a poesia toda possibilidade de construção do que se costuma chamar de um “sistema para uma cartografia de possíveis”. Uma questão, para destruir a destruição, é se a poesia pode projetar ainda algo mais perto do impossível e mais longe da rigidez violenta que há em todo mapa, em toda cartografia, como controle e poder.

 

  1. “Tenho que dar de comer ao poema. / Novas perturbações me alimentam:/ Nem tudo o que penso agora/ Posso dizer por papel e tinta”. Do que seus poemas têm fome?

 

– Há uma fome extrema, de tudo, nos lembra Herberto Helder. E ele nos diz que essa fome é fêmea. O que a torna muito mais forte porque quase sempre não tem lugar diante dessa história prévia: masculina, branca, asséptica etc. É a fome de bosta seca dos animais”. Isto é também um estado oscilante de devoração. A fome é capaz de produzir uma ação, um vamos fazer coisas. Mas isto é um aberto, e nunca algo confinado num si mesmo. É uma ação no e para o mundo. Por isso, para ele, “escrever acabou-se”, “a literatura não é um fato, um ato sério”, porque “o mundo não está para futuros” e o poeta é sempre um mero “rival do mundo”. O ponto é que agora estamos apenas diante de uma estratégia que se deixa visível como um modelo e segue um mapa de consumição. Uma contra-armadilha seria, ainda, pensar o pensamento da poesia como contingência arriscada, livre, um “se possível fosse” ou “a criança preenchida”. E aí a questão nem é com os “meus poemas” nem do que os “meus poemas” têm fome, mas retirar daí o pronome possessivo e pensar qual fome um poema ainda é capaz de produzir como engendramento de boca – apetite e, ao mesmo tempo, devoração – e, mais ainda, como uma desarticulação severa de todo si mesmo a partir da infância que é capaz de inventar.

 

  1. Indique UM poema que lhe parece, hoje, especialmente «fazer todo o sentido». Por quê?

 

– É possível pensar que, muitas vezes, o poema [e a poesia] aparece[m] de outro modo, mais distante do verso e mais próximo da linha e de sua impessoalidade, quando, quase numa brincadeira, essa linha nos reorienta o olhar e o corpo para desfazer o horizonte e, principalmente, o centro. Quando o poema é um corpo composto de amor, fúria, estranheza etc. Aquilo que de algum modo, numa anotação, pode simplesmente tocar com força a causa do outro – aí pode estar, ainda, como demora e morada, o poema:

1] lembro de uma coluna do Torquato Neto, de 14.09.1971, uma terça-feira, intitulada Pessoal Intransferível. E este título rearma toda injustiça do ser entre o “pedaço” e a “medida do impossível”: por isso “destruir a linguagem”, “quem não se arrisca não pode berrar” e é sempre o homem mesmo se for um boi.

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2] depois, do ano seguinte, 1972, o Acto Gratuito de Nicanor Parra, do livro Artefactos. Também desde o título, e num revés, é a ordenha de uma vaca que desfaz o mapa e produz um recuo e um passo-além: quando um animal nos olha contra a nossa presunção de imaginar que sabemos o que lhe passa na cabeça. Ou algo assim: como acolher, ato gratuito, o outro como outro.

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